8.6.04

Casal 51
O texto é meio comprido, mas o assunto é pertinente...

Existe vida inteligente no mundo das louras. Para ser mais exato: no mundo das louras geladas. Sem fazer muito barulho – nem muita espuma –, o mercado brasileiro de micro-cervejarias está em plena expansão, lançando de quatro a seis novas marcas por ano, espalhadas pelas cinco regiões do país. Com cervejas que fogem do padrão comum – o tipo Pilsen, adotado por 99,9% da produção cervejeira nacional –, as nanicas estão conquistando aos poucos o paladar do consumidor brasileiro.

Cervejas pretas feitas com malte torrado (e não extrato de caramelo), cervejas do tipo Ale, mais encorpadas e levemente amargas, e de trigo, entre outras inovações, a criatividade nacional já se faz notar. Em Belém (PA), a Amazon Beer produz cerveja aditivada com Bacuri, fruta típica do Norte do país; em São Leopoldo (RS), a Factory criou uma controvertida mistura com chocolate branco, que chegou a ser desclassificada num concurso de fórmulas. São mais de 60 micro-cervejarias em funcionamento e algumas já se consolidaram como cases de sucesso no mundo dos negócios. Como a catarinense Sudbrack, que viu sua produção de Eisenbahn, marca própria, crescer de 15 pra 110 mil litros/mês em um ano. Mas todas têm seus motivos próprios para festejar a chegada de outubro, que a tradição da oktoberfest alemã transformou no mês internacional da cerveja.

O recente lançamento de uma série de cerveja preta especial da marca Bohemia, com garrafa personalizada e numerada, é apontado por especialistas do setor como um sinal de que as micro-cervejarias podem estar começando a mudar a mentalidade do mercado. A Bohemia é fabricada pela Ambev, que reúne também a Brahma, a Antartica e a Skol. “Há anos, os brasileiros têm que conviver apenas com o tipo Pilsen. As grandes empresas meteram goela abaixo do consumidor esta cerveja aguada e sem gosto”, critica o sócio-gerente da Sudbrack, Juliano Mendes, 28 anos.

Os números da produção alternativa, porém, ainda são insignificantes diante do gigantismo da indústria cervejeira nacional. O Brasil produz 84,5 bilhões de litros por ano e está prestes a ultrapassar a Alemanha, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China em volume de fabricação. “Toda a produção das micro-cervejarias nacionais não chega a representar 0,3% do todo”, informa o mestre-cervejeiro Matthias Reinold, que mantém na internet um site sobre o assunto, o Cervesia. “Mesmo assim, as pequenas começam a incomodar, pois o brasileiro de maior poder aquisitivo está despertando para as cervejas diferenciadas.”

Um cervejeiro com pedigree

Não é necessariamente pelo tamanho que se define uma micro-cervejaria. Há cervejas de distribuição regional que, a exemplo das grandes do setor, estão apostando apenas no tipo Pilsen, tentando agradar ao maior número de pessoas possível. No entendimento de André Nothaft, 42 anos – um dos três únicos engenheiros-cervejeiros do país, formado em Berlim, na Alemanha –, o foco na qualidade do produto é o melhor critério.

Dizer que André Nothaft cresceu em meio a barris e tanques de cerveja não é apenas força de expressão. Filho do cervejeiro alemão Paulo Nothaft – que veio para o Brasil no pós-guerra, trabalhou anos na Brahma e criou a fórmula da Cerpa –, André levanta as bochechas e sorri ao lembrar a infância passada nas muitas fábricas que em que o pai esteve lotado. “Eu brincava de pique-esconde e polícia-e-ladrão no meio dos sacos de cevada e das máquinas de lavar garrafa”, conta. “E já tomei muito banho de piscina em tonel de cerveja cheio de água quente.” Apesar de uma ligeira resistência do velho Nothaft, André foi estudar engenharia química na UFRJ e acabou seguindo a profissão de cervejeiro. Começou carregando sacos e lavando tanques na Brahma, mas em 1981 foi encaminhado pela empresa para uma escola em Berlim, na Alemanha, onde se formou como um dos três únicos engenheiros-cervejeiros do Brasil. Hoje é o único representante do país como jurado nos festivais internacionais de cerveja.

Na Brahma, André chegou a Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento e, à frente da primeira estrutura de pesquisa sobre cerveja no país, lançou produtos como a Skol Bock, a Skol Ice e a Miller. Depois de 16 anos na companhia, largou a vidinha segura e o plano de saúde para se arriscar num negócio próprio. “As boas micro-cervejarias têm que criar produtos diferenciados, que encantem uma parcela do consumidor, mesmo que não sejam unanimidade”, diz. “Devem se preocupar até com a qualidade do copo em que a cerveja é servida”, ensina. André compara a situação do mercado brasileiro de micro com a que os Estados Unidos viveram nos anos 80. “Lá também quase não havia espaço para cervejas diferentes e hoje as pequenas já respondem por 2,7% da produção americana”, diz. Existem 1.460 micro-cervejarias nos Estados Unidos, que geram US$ 3,3 bilhões por ano.

O tema é fascinante e sua história, romântica. As pequenas produções de cerveja eram comuns na Europa até a Revolução Industrial. A retomada da produção alternativa começou no final dos anos 70, quando um grupo de jornalistas londrinos voltou de um casamento numa cidade do interior frustrado por não ter conseguido beber as cervejas que alegravam suas adolescências. Os jornalistas lançaram uma campanha pela retomada das pequenas cervejarias e, em pouco mais de um ano, colheram mais de 1 milhão de assinaturas. A idéia tomou vulto em outros países, em especial nos Estados Unidos, onde a grande estrela entre as micro, com 20% do setor de fórmulas especiais, é a Boston Brewry, que fabrica a Samuel Adams, marca com mais de 10 tipos personalizados de cerveja.

“Os moradores da cidade de Boston se orgulham em ter uma cerveja própria de qualidade. Inspirados na Samuel Adams, criamos a Eisenbahn. Blumenau é a capital da cerveja no Brasil e merecia ter seu produto próprio e especial”, diz Juliano Mendes, da Sudbrack. Formado em Administração, Juliano e o pai, o engenheiro Jarbas Mendes, lançaram a Eisenbahn (“Estrada de ferro”, em alemão) em junho de 2002. Eles mantêm um pub para 30 pessoas junto à fábrica, apenas para atender turistas, que ali podem conhecer, entre outros tipos, a Weisenbier, feita de trigo, de aparência turva e comum no sul da Alemanha.

Há dois meses a Sudbrack começou a engarrafar o produto e hoje já distribui para a Angeloni, maior rede de supermercado de Santa Catarina, e a Zaffari, a maior do Rio Grande do Sul. No Rio, a marca pode ser degustada no Belgian Beer Paradise, bar de cervejas importadas da Barra da Tijuca; em São Paulo, ela já é servida em bares como o Empório Santa Maria, nos Jardins, e o Frangó, na Freguesia do Ó. “Existia um mito de que brasileiro só gosta de cerveja clara, aguada e refrescante. Não existia demanda diferente porque não existia produto”, diz Juliano. “Estamos tentando mudar esta cultura.”

Em defesa da espuma local

A primeira pequena cervejaria do Brasil, a Bavarian Park, foi fundada em 1985, em Curitiba (PR). Outra pioneira, a Dado Bier, chegou a ter casas espalhadas por outras capitais mas hoje entregou seu setor de garrafas para a Ambev. “A micro-cervejaria tem que se manter ágil para atender as demandas específicas de sua região”, ensina o mestre-cervejeiro Reinold. “O bairrismo favorece a manutenção das marcas. Hoje acabou esta tendência das grandes incorporarem as fábricas menores”, diz outro engenheiro-cervejeiro brasileiro (são apenas três), Carlos Frederico Fulda, 71 anos, formado em Munique e com anos de serviços prestados no desenvolvimento de produtos para a Brahma e a Cerpa. Fulda gosta de citar Petrópolis, na Região Serrana do Rio, como um exemplo da relação entre cerveja e a população local. “Quando perdeu a Bohemia para a Brahma, a cidade ficou ferida em seu orgulho. Hoje Petrópolis comemora por ter de novo uma cerveja própria, a Imperial”, conta.

Em Manaus, a cervejaria Fellice é outro exemplo de como uma produção local e diferenciada pode favorecer a qualidade e o consumidor. “Antes de criarmos nossa própria cerveja, não existia chope preto em Manaus, pois a Ambev tinha o monopólio e não vendia este produto aqui”, revela Yeda Carvalho, uma das sócias do empreendimento. “Eu ia ao Rio e São Paulo só pensando em tomar um chope escuro. Hoje, é sucesso entre nossos freqüentadores”, orgulha-se a empresária, do grupo Simões, que tem fábricas da Coca-Cola na região Norte.

Até 2005 existirão 100 micro-cervejarias no país”, prevê o mestre Fulda. Muitas delas estão filiadas à Abmic (Associação Brasileira de Micro-Cervejarias), com sede em São Paulo, que aglutina várias marcas já com boa distribuição no mercado, como a Baden Baden, de Campos do Jordão, e a Colorado, de Ribeirão Preto. Fulda aponta como outro sinal da crescente especialização deste mercado o surgimento de várias escolas de formação de cervejeiros, como o Centro de Tecnologia de Alimentos (Cetec), que o Senai mantém em Vassouras, interior fluminense. Em São Paulo, também há centro de formação técnica em cerveja na Unesp e no município de Lorena, com mini-fábrica para pesquisa e desenvolvimento de produtos.

Abrir uma micro-cervejaria é um investimento bem menos astronômico do que se imagina. Com cerca de R$ 170 mil é possível montar uma unidade para a fabricação de 7 mil litros/mês. Mas há ainda os gastos com o desenvolvimento da fórmula. “O retorno é certo e fácil”, diz Marcelo Nicolosi, 36 anos, gerente da Mec Bier, uma das empresas que se especializaram na produção e venda de máquinas para o setor. “A maioria dos nossos clientes já se expandiram e triplicaram de tamanho”, gaba-se. São várias as escalas de uma micro-cervejaria. Há até um tipo caseiro, batizado de Linha Hobby, que permite a fabricação de 100 litros/mês ao custo inicial de R$ 32 mil. O formato é ideal para quem costuma receber grande quantidade de amigos amantes da cerveja em casa. Um presente perfeito para a chácara do Zeca Pagodinho, por exemplo.


Nenhum comentário: